Thursday, August 02, 2012

3 garotas


Nunca vi uma colegial que andasse tão serena quanto ela. Colegiais normalmente não têm serenidade. Não que andem por aí cheios de ímpeto ou agitação, mas a quietude colegial não é fruto da serenidade. Colegiais cabisbaixeam sem força e sem brilho nos olhos, com o desejo não rondando grandes sonhos de juventude, mas desejando exasperadamente almoçar e dormir.
Já ela andava austera e devagar, como se saboreasse o ar fresco da alameda por onde passava, como se tivesse a consciência de que, não importa o que acontecesse, o mundo teria de esperá-la o tempo que fosse.


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Hoje na rodoviária eu estava sentado e, perto de mim, ouvindo música, havia uma garota de uma beleza confortável (sim, ela era peituda, mas contribuem para a escolha do adjetivo sua pele bonita e lisinha e os cabelos castanhos-claros ondulados e sedosos). Eu a fitava com alguma discrição quando ela, de repente, começou a chorar discretamente. Não sei se percebendo que eu estava olhando, mas certamente calculando a possibilidade de ser vista por qualquer um, ela pegou seus óculos escuros e os colocou.
Passaram-se alguns vários minutos e ela espirrou. Eu lhe desejei saúde, sem esperar ser ouvido, já que ela estava com fones. Felizmente ela ouviu e agradeceu, de modo que então ela pôde saber que, quando chorava, eu não a olhava nem por curiosidade, nem por sadismo e muito menos por estranhamento, mas sim porque, mesmo sem saber quem ela era, eu me preocupava.
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À muitas e muitas dezenas de metros do palco onde se apresentavam Os Mutantes, havia, ao meu lado, um casal excepcionalmente bonito.
Ela (quem, confesso, reparei primeiro e por mais tempo) tinha cabelos bem negros, seu corpo era robusto e seu rosto portava feições fortes, mas sua aparência não era nem bruta, nem grosseira, muito pelo contrário, era elegante, suave, delicada sem ser frágil. Era uma mulher grande, apesar disso as proporções de seu corpo eram de uma adolescente bem alimentada, daquelas que são bem fornidas e firmes aos dezesseis e gordas aos dezenove, mas ela não, ela, que certamente não era uma adolescente, estacionara neste dezesseis anos. Seu rosto – de boca grande, lábios grossos e queixo agudo, de olhos grandes e expressivos e sobrancelhas grossas e bem desenhadas, de maçãs levemente pronunciadas, mas sem arredondar-lhe o rosto – não continha marcas de velhice nem puberdade, não carregava expressão de ingenuidade tampouco cansaço, mágoa, conformismo ou outra dessas coisas que trazem os anos. Sua expressão era de vigor e ímpeto. Linda, era como se não fosse humana, mas de uma espécie mais forte, bela e sábia.
O rapaz ao seu lado, que poderia muito bem ser um modelo, mas sem a expressão afetada ou blasé comum à categoria, era também muito belo, também robusto sem ser grosseiro, também jovem, vigoroso, como se pertencesse à mesma espécie superior daquela moça. Pelo porte e beleza, poderia se dizer que eram irmãos, mas isto eu sabia que não eram, pois não se tratavam como tal. Formariam um belíssimo! belíssimo! casal, mas, para infelicidade da beleza em geral, também não agiam como tal. E para a infelicidade dele também: ele a queria, a queria de uma forma tão nobre e bela (uma forma um tanto condizente à sua espécie) que temia ser impossível expressar seu desejo, que qualquer tentativa de expressá-lo fosse tão grosseira que destruísse a afeição que ela tinha por ele, ao invés de elevá-la um degrau acima.
E eu sabia disso... sabia pelo modo como ele se dirigia a ela e pelo modo como não se dirigia, sabia pelo modo como a tocava e não a tocava, sabia pelo modo como a olhava e não a olhava... e pelo modo como fechou os olhos e as mãos e levantando a cabeça projetou o tórax como se quisesse fazer com que seu coração pulasse para fora e fez suas as palavras da canção “por favor, não leve a mal. Eu só quero que você me queira...”

Wednesday, October 06, 2010

Animista

Eu não costumo postar nada aqui que seja escrito de uma maneira muito pessoal, mas senti vontade de postar esse texto que escrevi pra um amigo meu e não senti a menor vontade de mexer nele, então vai do jeito que está.


Eu sou um animista. Trato todas as coisas assim como eu trato as pessoas, meus objetos, os lugares, as músicas… tratar as coisas como trato as pessoas significa basicamente duas coisas: me relaciono com elas de acordo com o que sinto por elas, o que espero delas e o que elas esperam de mim; me relaciono com elas sabendo que nenhuma delas é perfeita, nenhuma delas há de cumprir todas as funções (“as pessoas têm funções”: uma das lições mais importantes que eu já aprendi, lição que deveria ser óbvia, mas não me era), que são em alguma medida passageiras, que o tempo meu e delas não há necessariamente de durar, o que não quer dizer que não sejam até hoje importantes (têm pessoas que eu nunca mais vi, tem a garota que a única coisa que nós realmente vivemos juntos foi eu ajudá-la a carregar um criado mudo pela avenida, têm os meus tênis que usei até furar a sola).

Quando eu fui atropelado e presenciei um assalto no mesmo dia, já inspirado pela possibilidade de um “fim do mundo”, de uma situação insustentável num futuro deus-sabe-lá quão próximo, eu rompi de vez com o asfalto e com a cidade, e decidi que iria, assim que possível, morar no campo e ser capaz de produzir minha subsistência para quando não houvesse mais mercado, para quando vivêssemos numa segunda era feudal.

Anteontem a meteorologia na televisão disse que a previsão de chuva para o dia seguinte correspondia ao volume de seis dias na média desta época do ano e que isto era causado por uma temperatura na média dois graus acima do normal da época. Vi também pessoas disputando comida doada pela ajuda humanitária no Haiti, devastado por um terremoto. Estas chuvas estão devastando, em menor escala, é verdade, muitas cidades por aqui. A diferença da violência das chuvas do ano passado pra cá me faz perceber que a possibilidade do mundo inteiro virar um Haiti é mais próxima do que até mesmo eu, que corria o risco de ser considerado o maluco da praça, imaginava. No dia seguinte, conversando sobre isso com a minha mãe num ônibus suburbano que fazia um pequeno trajeto na Dutra, na conurbação entre Jacareí e São José dos Campos, ela me disse que não podemos mais planejar as coisas a longo prazo, que as coisas andam mudando rápido demais para esse tipo de planejamento. E é verdade, andam mudando tão rápido que aos vinte e um anos me sinto velho, vejo como as coisas mudaram tanto em minha curta vida e freqüentemente converso com os meus amigos sobre as coisas que conhecemos que as novas gerações, que já são duas ou três, não conhecerão. Mas mais do que o peso dos anos passados, que são cada vez mais pesados, naquela hora eu senti o peso da incerteza em que vive, ou em que deveria viver, minha geração.

É verdade que empenhei minha vida pela minha insatisfação. Não sou movido exatamente por ambições, mas insatisfações. Se o mundo fosse perfeito… não, se fosse perfeito seria terrível, mas se o mundo fosse bom, talvez eu estudasse arquitetura viveria mudando de cidade em cidade para ir atrás de qualquer garota que me desse um sorriso que mostrasse seus caninos. Mas eu decidi estudar filosofia, pelo motivo por qual metade das pessoas entram no curso de filosofia, mas todos eles têm a mais absoluta vergonha de revelar: vontade de mudar o mundo. Felizmente estudar filosofia é algo gratificante para mim, mas às vezes eu penso como seria tão mais feliz se eu vivesse uma vida menos pretensiosa, só que essa pretensão toda não é fruto da vaidade, mas do desespero diante de um mundo podre. Assim, um fim-do-mundo iminente, a possibilidade de quase que um reset na humanidade começou a me aparecer como a grande esperança (o que é triste, muito triste) e mesmo que ela me parecesse ainda remota, só uma pira, uma nóia, uma idéia fraca, eu acabei por estabelecer um laço de dever com esta possibilidade, pois seria uma oportunidade muito boa para se deixar passar só porque é improvável e não há esperança melhor que justificasse me empenhar nesta, que não existe, do que naquela, que é improvável. E assim, com o plano do pequeno feudo, sacrifiquei os meus planos de viver de cidade em cidade, morando de aluguel nos centros de pequenas cidades. Mas o sacrifício da minha natureza nômade de geminiano não me incomodou por muito tempo, pois já havia me acostumado a este tipo de sacrifício e a tristeza que dele advém (e bom, eu creio que vou gostar de morar na roça, apesar de ter de me sedimentar em um só lugar).

Ontem não fiquei triste pelo o que eu escolhi não fazer da minha vida, fiquei triste pelo o que eu não poderia fazer nem se eu quisesse, assim como alguém se lamenta pelos planos que tinha para e com uma ex-namorada, mas que não se realizarão não só porque terminaram, porque decidiram não mais fazer planos juntos, mas porque ela se tornou outra pessoa completamente diferente, porque são planos que se tornaram irrealizáveis.

O aluguel e o avião um dia me prometeram o mundo inteiro em uma vida, a libertinagem geográfica, pois, assim como as pessoas, os lugares são únicos e cada um me faria feliz de um jeito diferente. Mas o concreto que ergueu os prédios de apartamento e o asfalto que cobre estradas e pistas de pouso, eles cobrem praticamente todo o terreno num raio de cinco quilômetros, eles sufocaram a terra na expansão desenfreada e compulsória do capitalismo, que sobreviveu a crise estrutural da década de trinta, a disputa ideológica da guerra fria, mas não terá para onde fugir quando não houver mais para onde ou com o que se expandir.

Ontem lamentei por tudo o que o progresso havia prometido, segurança, mobilidade, liberdade.

Como quando, na quarta vez em que tomei o Santo-Daime, fiquei triste porque percebi que na verdade eu gostaria de amar certa garota de quem eu tinha então muitas mágoas, mas não era mais possível, ao invés de sentir raiva do progresso ao ver montes de sacos plásticos e quilômetros de cinza, fiquei triste por ele não ter ido por um rumo melhor.

As luzes da cidade ainda me parecem bonitas e isto me dói.

Monday, February 15, 2010

Mais hai-kais

Põe-se o Sol
Meu teto
Happy-hour de inseto

Perplexidade
Infla meu coração
Mingua meus versos

Desilusão e Decepção
Em meu peito
Uma pedra limosa

Sunday, January 03, 2010

Acidente - Parte 2

Continuação do post Acidente, de 17 de Fevereiro de 2008 (eu não consegui colocar o link, então tenha a gentileza de procurar nas postagens mais antigas).

A vida sempre é uma droga. Ou ela é uma droga porque é uma bosta; ou é uma droga porque de tanto vivê-la, vicia-se nela e a vive por hábito; ou porque ela proporciona prazer, euforia e não se quer largá-la, pois dela torna-se dependente.Quando, por volta dos meus oito anos, percebi que vivia por hábito, minha vida se tornou uma merda sem sentido. Mas nos meus pŕe-maturos últimos anos a vida me foi um narcótico que me proporcionava extremo prazer.
Inicialmente morrer me frustrou profundamente. Logo agora! Agora, que a vida me parecia motivo suficiente para viver e da qual eu esperava tanto! Se tivesse sido quando eu ainda era uma criancinha, eu nem teria ligado para isso, como não ligava para nada. Se fosse na minha pré-adolescência, tenho certeza que seria um alívio. Mas não, morri quando tinha vontade de viver, quando havia para ser disperdiçada uma vontade de viver... e não só ela, mas também uma morte.
Pois sim, frustrou-me disperdiçar não só minha vida e minha vontade, como também disperdiçar minha morte. Minha vontade de viver se justificava pelo fato de que, até onde se pode ter certeza, só temos uma vida, então é melhor aproveitar a oportunidade da melhor forma possível. O mesmo eu pensava sobre a morte: se é inevitável e é unica, que seja a melhor possível. Pouca gente entende como é possível aproveitar a morte. A maioria só espera a menos pior das mortes, a mais indolor, e assim disperdiça-se tantas mortes, o que, perto de tudo o que é disperdiçado antes dela, não parece uma grande tragédia... talvez apenas o gran finale de uma.
A morte pode ser aproveitada de muitas maneiras: paga-se com a vida, e com a morte, pelos atos heróicos em prol de algo maior que a própria vida e também pelas experiências intensas em prol de nada mais que a própria vida; pode-se fazer com que a morte seja a vernisage de uma vida bem vivida, o último brilho de uma vida luminosa, o mais forte brilho, pois só então é possível que a vida reluza toda de uma vez só; ou pelo contrário, a última chance de chamar atenção a uma vida disperdiçada, um lembrete para o fato de que é preciso aproveitá-la ou para o seu oposto, de que não é possível fazê-lo. E da maneira mais babaca me foram disperdiçadas as raras vida e morte e a mais rara ainda vontade de viver.
Mas agora, imerso em nada, impressionado apenas por minhas memórias e pensamentos, agora que já lembrei tudo o que tinha para lembrar e pensei tudo o que havia para pensar, agora que já lamentei não mais poder sentir tudo aquilo que me seduzia e minha mente começa a se acalmar e, uma vez que nada mais a ela chega, a esmaecer, sinto um confortável não sentir, não pensar, não esperar, não se preocupar e me encontro tranqüilo por estar livre daquele raro infortúnio de viver, sentir, e de seu conseqüente e pesado fardo de querer ser feliz.

Tuesday, July 28, 2009

Um homem à frente de seu tempo

"Um homem à frente de seu tempo é um homem solitário", escreveu o homem em seu caderno, à noite, pensando numa conversa que havia tido naquele dia, na qual um senhor de reconhecida erudição e inteligência, ante à sua excentricidade e não obstante lucidez, disse-lhe que era um homem à frente de seu tempo.

Os seus inúmeros fracassos que antes lhe pareciam frutos de uma irremediável incompetência, as suas desvalorizadas opiniões que já o fez pensar que tinha traços de insanidade, agora se mostravam fruto da incompreensão alheia. Algumas vezes já se questionou se estava errado, mas sempre acaba convencendo a si mesmo de que estava certo, apesar de nunca ter conseguido até então convencer os outros. Mas agora ele havia sido compreendido. Por apenas uma pessoa em toda sua vida, mas foi o suficiente para afastar todos os temores de ser ele realmente um lunático (e percebeu que esse temor é que era coisa de lunático). Agora ele sabia que sua mente não lhe estava pregando peças, agora ele sabia que tinha razão!

Como se isso fosse consolo, seu cansaço de viver e pessimismo deram lugar a uma satisfação de cumprimento do dever e a uma obstinação em continuar, através de sua excentricidade, a anunciar um tempo vindouro e triunfal e conclamar para a construção deste.

E incorrendo ao típico engano de homens à frente de seu tempo, que acreditam que podem sozinhos mudar o mundo, acreditou que aquela sentença solitária poderia mudar o mundo ao seu redor, quando na verdade, assim como homens que não pertencem ao seu tempo, ela era incompreensível e poderia, talvez, servir apenas de inspiração e estandarte para as gerações futuras. Talvez, pois ele sentia que não pertencia ao tempo presente, sabia que muito menos pertencia ao passado, mas não percebeu que isto não quer dizer que pertença a algum tempo futuro.

Da Sacada

Da sacada, olhava-a dentro do quarto com curiosidade. Sua curiosidade era uma farsa. Este seu ar só estava em seu rosto para que ela soubesse que suas intenções iam além das carnais, que pretendia passar algum tempo com ela, que pretendia realmente conhecê-la.
Mas a curiosidade exposta em seu semblante de olhos receptivos e de resto de quem não está ali era uma farsa. A curiosidade abandonava sua mente para dar lugar ao esforço de expressá-la, e só voltava quando tal esforço cessava.
Verdadeira ou falsa, sincera ou inventada, espontânea ou forçada, de nada adiantava sua expressão. Ela jamais tomaria conhecimento, pois não olhava para fora.
Tantas janelas da sua via e só ele sabia usá-las. Por uma delas viu uma televisão na qual alguém, oculto por uma cortina, assistia Big Brother. 'Para que Big Brother...' pensou, 'se você tem janelas?'
Seria medo de ser observado de volta?
Não podia acenar nem à mulher, nem à garota, elas viriam maldade e seu pai desejaria usar a maldade contra ele. Tentou acenar para a avó, mas ela o ignorou e olhou as estrelas. Nem a criança, ser de natureza curiosa, o viu.
Teve a impressão de que as crianças não são educadas para reparar nas pessoas, ele mesmo não tinha sido – ou pior, educado para não reparar.

Friday, July 11, 2008

Seu pensamento não viajava, seu coração não disparava. Percebeu que pensava e agia mundanamente e, ao invés de se encher de um vazio desesperado como lhe aconteceu em situações semelhantes, apenas se irritou mundanamente. Talvez por falta de criatividade, talvez por insensibilidade, não conseguiu vislumbrar nenhuma maneira de sair daquele estado e, sem o opressivo sentimento de derrota e impotência que lhe tomava quando tomava tal decisão, decidiu esperar.

A espera não o desesperou como de praxe, mas como estava todo estático, a espera o entediou e o irritou mais ainda, pois aquela ausência de pensamento lhe parecia uma grande perda de tempo. Queria escrever, pois sempre tinha muitas idéias e, atropelado por elas, não conseguia. Agora não podia por não lhe ocorrer nenhuma idéia. Ainda assim, serenamente, pegou seu bloco e uma lapiseira, sem se preocupar se seu plano daria certo. A lapiseira não funcionou e nunca uma coisa tão banal o incomodou tanto. Mas afinal, desta vez, esta coisa banal não foi escurecida na sombra de grandes temas existênciais e, então, foi sua vez de incomodar. Arranjou uma caneta vermelha, o que, no início, o incomodou também. Mas deixou os pequenos incomodos de lado e encarou a clara folha nova, totalmente vazia, o que — só depois foi perceber — aumentou a sua sensação de nada. Veja bem, é uma sensação de nada, não de vazio.

Ameaçava escrever, mas não começava. Despretensiosamente, e até com um certo desdém pela já tão batida metalingüagem, começou a descrever de maneira pobre esse estado pobre. "Seu pensamento não viajava, seu coração não disparava". Mas logo a pobreza de seu texto não mais o incomodou, pois lhe pareceu o modo mais profundo de descrever aquele estado raso, que logo lhe causou prazer pela intensa sensação de brandidade à sua volta.