Sunday, February 17, 2008

Acidente

Abri a porta e pulei, quando vi estava morto. Não houve tempo para nada. Quando perceberam e se chocaram, já estava na pista. Quando começaram a esboçar um “o que você ta fazendo?!”, já estava morto. Sem aviso nenhum, sem drama, sem levantar em momento algum a suspeita de que eu poderia fazê-lo, me atirei contra a morte.

Houve um tempo, há uns tantos anos, em que eu quis a morte, ou achei que queria, ou realmente a quis e não tive coragem de buscá-la. Mas nos últimos anos andava tão feliz, amava tanto a vida… e todos podiam perceber. Devem estar se perguntando agora, portanto, por quê motivo eu quis a morte, se ultimamente eu dizia que era belo, e aceitava de bom grado, tudo o que me acontecia, inclusive as mais sôfregas desventuras que em meu peito rasgavam sangrias desatadas (sim, isso foi trágico. Pra você ver como eu achava tudo, mas tudo mesmo, belo).

Meu amigo Greivistone, meio suburbano, meio byronista, amante de toda e qualquer literatura que em algum momento seja mais amarga que magnopyrol (e cara! isto é amargo!), começou há pouco, por indicação minha, a ler O Lobo da Estepe, do Hesse. Eu não duvido que ele dissemine uma teoria de que eu, assim como Harry Heller, diante do dilema do suicídio, estipulei uma data mínima até a qual deveria viver e depois dela poderia soltar o fardo da vida caso não o agüentasse. É uma boa teoria, faria bastante sentido. A idéia de uma saída de emergência em minha vida explicaria a alegria e a leveza com que vivi os últimos anos, em contraste àquela época atormentada a qual se sucedeu. Greivistone poderia até especular que minha indicação era um aviso, anunciando que finalmente o prazo terminara e a porta estava destrancada para que eu a usasse assim que ela me parecesse mais atrativa que a vida.

É uma boa teoria, mas não corresponde ao que se passou na minha mente naqueles meus últimos momentos, ou frações de momentos. Realmente a porta estava destrancada. Não a da minha vida e morte, mas a do carro. Em menos, talvez, de dois segundos, do banco do carona vi pelo retrovisor um caminhão na faixa à direita da que estávamos, pesado, veloz, mantendo de nós uma distância que percorreria num tempo imensurável de tão pequeno, e olhei para a porta, pela janela vi o asfalto áspero a poucos centímetros de mim, correndo veloz, borrando sua imagem, separado de mim por meras placas de metal e plástico, e olhei para o trinco, ao alcance da mão, acionável a um prático e ligeiro movimento e pensei “vida frágil morte a toda volta poderia ser agora”. E foi. O caminhão se chocou contra mim quase tão brutalmente quanto aqueles pensamentos se chocaram contra a superfície da minha consciência. E devem estar se perguntando até agora por que eu preferi a morte em detrimento da vida.

Que os físicos tentem calcular a absurda velocidade em que estava essa coisa imaterial que são meus pensamentos para conseguir imprimir uma força tão grande quanto a de um caminhão de algumas toneladas em uma auto-estrada, pois assim como a frente chata daquele Scania, os pensamentos me atingiram e me lançaram longe. Em momento algum eu desejei a morte.

5 Comments:

Blogger NÃO said...

Ei! Eu acho que está acontecendo alguma coisa com este texto, só não sei o quê...

8:14 PM  
Blogger bill said...

Belo, muito belo!
Parabéns!

Ei, na noite em que decidiu morrer, Harry Haller conheceu uma garota numa boate, que lhe ofereceu, meio sem querer, motivos pra continuar vivendo. Moral da história: tudo gira em torno da buceta.

Ah, e como diz o Hesse, nem toda pessoa que se mata é suicida. E nem todo suicida tem coragem de se matar.

:D

7:59 AM  
Anonymous Anonymous said...

harry, sem querer eu clico aqui e o esquecido blog tem 1 novo texto!
e q lindo.
mas não vou escrever mto, deixo p/ vc, pequeno querido.
inté.

5:44 PM  
Blogger Yuri Sena said...

Olá Harry, Conheço alguns Grave Stones na Unicamp!

8:58 AM  
Anonymous Anonymous said...

Muito bom.

Afinal, como disse algum filósofo, a vida é um aprendizado da morte.

9:23 PM  

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