Animista
Eu sou um animista. Trato todas as coisas assim como eu trato as pessoas, meus objetos, os lugares, as músicas… tratar as coisas como trato as pessoas significa basicamente duas coisas: me relaciono com elas de acordo com o que sinto por elas, o que espero delas e o que elas esperam de mim; me relaciono com elas sabendo que nenhuma delas é perfeita, nenhuma delas há de cumprir todas as funções (“as pessoas têm funções”: uma das lições mais importantes que eu já aprendi, lição que deveria ser óbvia, mas não me era), que são em alguma medida passageiras, que o tempo meu e delas não há necessariamente de durar, o que não quer dizer que não sejam até hoje importantes (têm pessoas que eu nunca mais vi, tem a garota que a única coisa que nós realmente vivemos juntos foi eu ajudá-la a carregar um criado mudo pela avenida, têm os meus tênis que usei até furar a sola).
Quando eu fui atropelado e presenciei um assalto no mesmo dia, já inspirado pela possibilidade de um “fim do mundo”, de uma situação insustentável num futuro deus-sabe-lá quão próximo, eu rompi de vez com o asfalto e com a cidade, e decidi que iria, assim que possível, morar no campo e ser capaz de produzir minha subsistência para quando não houvesse mais mercado, para quando vivêssemos numa segunda era feudal.
Anteontem a meteorologia na televisão disse que a previsão de chuva para o dia seguinte correspondia ao volume de seis dias na média desta época do ano e que isto era causado por uma temperatura na média dois graus acima do normal da época. Vi também pessoas disputando comida doada pela ajuda humanitária no Haiti, devastado por um terremoto. Estas chuvas estão devastando, em menor escala, é verdade, muitas cidades por aqui. A diferença da violência das chuvas do ano passado pra cá me faz perceber que a possibilidade do mundo inteiro virar um Haiti é mais próxima do que até mesmo eu, que corria o risco de ser considerado o maluco da praça, imaginava. No dia seguinte, conversando sobre isso com a minha mãe num ônibus suburbano que fazia um pequeno trajeto na Dutra, na conurbação entre Jacareí e São José dos Campos, ela me disse que não podemos mais planejar as coisas a longo prazo, que as coisas andam mudando rápido demais para esse tipo de planejamento. E é verdade, andam mudando tão rápido que aos vinte e um anos me sinto velho, vejo como as coisas mudaram tanto em minha curta vida e freqüentemente converso com os meus amigos sobre as coisas que conhecemos que as novas gerações, que já são duas ou três, não conhecerão. Mas mais do que o peso dos anos passados, que são cada vez mais pesados, naquela hora eu senti o peso da incerteza em que vive, ou em que deveria viver, minha geração.
É verdade que empenhei minha vida pela minha insatisfação. Não sou movido exatamente por ambições, mas insatisfações. Se o mundo fosse perfeito… não, se fosse perfeito seria terrível, mas se o mundo fosse bom, talvez eu estudasse arquitetura viveria mudando de cidade em cidade para ir atrás de qualquer garota que me desse um sorriso que mostrasse seus caninos. Mas eu decidi estudar filosofia, pelo motivo por qual metade das pessoas entram no curso de filosofia, mas todos eles têm a mais absoluta vergonha de revelar: vontade de mudar o mundo. Felizmente estudar filosofia é algo gratificante para mim, mas às vezes eu penso como seria tão mais feliz se eu vivesse uma vida menos pretensiosa, só que essa pretensão toda não é fruto da vaidade, mas do desespero diante de um mundo podre. Assim, um fim-do-mundo iminente, a possibilidade de quase que um reset na humanidade começou a me aparecer como a grande esperança (o que é triste, muito triste) e mesmo que ela me parecesse ainda remota, só uma pira, uma nóia, uma idéia fraca, eu acabei por estabelecer um laço de dever com esta possibilidade, pois seria uma oportunidade muito boa para se deixar passar só porque é improvável e não há esperança melhor que justificasse me empenhar nesta, que não existe, do que naquela, que é improvável. E assim, com o plano do pequeno feudo, sacrifiquei os meus planos de viver de cidade em cidade, morando de aluguel nos centros de pequenas cidades. Mas o sacrifício da minha natureza nômade de geminiano não me incomodou por muito tempo, pois já havia me acostumado a este tipo de sacrifício e a tristeza que dele advém (e bom, eu creio que vou gostar de morar na roça, apesar de ter de me sedimentar em um só lugar).
Ontem não fiquei triste pelo o que eu escolhi não fazer da minha vida, fiquei triste pelo o que eu não poderia fazer nem se eu quisesse, assim como alguém se lamenta pelos planos que tinha para e com uma ex-namorada, mas que não se realizarão não só porque terminaram, porque decidiram não mais fazer planos juntos, mas porque ela se tornou outra pessoa completamente diferente, porque são planos que se tornaram irrealizáveis.
O aluguel e o avião um dia me prometeram o mundo inteiro em uma vida, a libertinagem geográfica, pois, assim como as pessoas, os lugares são únicos e cada um me faria feliz de um jeito diferente. Mas o concreto que ergueu os prédios de apartamento e o asfalto que cobre estradas e pistas de pouso, eles cobrem praticamente todo o terreno num raio de cinco quilômetros, eles sufocaram a terra na expansão desenfreada e compulsória do capitalismo, que sobreviveu a crise estrutural da década de trinta, a disputa ideológica da guerra fria, mas não terá para onde fugir quando não houver mais para onde ou com o que se expandir.
Ontem lamentei por tudo o que o progresso havia prometido, segurança, mobilidade, liberdade.
Como quando, na quarta vez em que tomei o Santo-Daime, fiquei triste porque percebi que na verdade eu gostaria de amar certa garota de quem eu tinha então muitas mágoas, mas não era mais possível, ao invés de sentir raiva do progresso ao ver montes de sacos plásticos e quilômetros de cinza, fiquei triste por ele não ter ido por um rumo melhor.
As luzes da cidade ainda me parecem bonitas e isto me dói.